15/04/2021 às 01:12 Arte, cultura e sociedade

Relato de uma médica na linha de frente contra o COVID19.

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5min de leitura

Por Dra. Amanda Zélia.

“Dona Maria, boa noite! Meu nome é Amanda, sou a médica de hoje à noite e vim ver como está a senhora. Vou precisar fazer aquele exame chato de novo...”

Já chego com a agulha e a seringa na mão, e vejo os pacientes com os olhos marejados só de saber que farão a gasometria de novo - alguns, pela quinta ou oitava vez no dia. Cansados, com oxigênio em vazão alta ressecando os lábios e a garganta, e com fome - porque não aguentam se alimentar, o pulmão não permite. Cansam só de falar, e pelo risco de precisar intubar a qualquer momento aqueles mais graves, precisamos deixar em dieta zero.

A máscara é ruim, desconfortável, e machuca. A posição, que tanto insistimos, de barriga para baixo, dá dor nas costas. Imagine passar 24h, 48h, 72h só de barriga pra baixo na cama, sem poder mudar de posição para não cair a saturação. Sem ir ao banheiro, usando fraldas e sem conseguir comer. Sem conseguir beber água, muitas vezes, porque a equipe é tão pouca e os pacientes são tantos que, às vezes não conseguimos tempo hábil no plantão para encher uma garrafa de água e levar para eles.

Nesse meio tempo, eu chego, trazendo a agulha e a seringa. Palpo a artéria radial, no cantinho do punho próximo ao polegar. Peço que deixe a mão parada, digo que sei que vai doer e que sinto muito. Que se houvesse outra forma de ver, realmente, a resposta às terapias ventilatórias e a real necessidade de oxigênio, faria. Mas não há. Então lá vamos nós. Uma furada, não vem sangue. Outra furada, bate no osso. Terceira furada, veio! Opa, era sangue venoso - não serve para avaliar. Mudo de braço.

Os punhos já estão roxos e sofridos, cheios de marcas. O choro, o grito, às vezes corre livre. E quanto mais eu sinto a dor deles, mais difícil fica coletar. Tento puxar assunto pra distrair, mas nem sempre consigo. Faço o exame, passo na máquina para a leitura - e aí, vem ruim. O oxigênio, apesar de ofertarmos o máximo que temos no hospital, na melhor oferta pela melhor máscara, não funciona: o oxigênio no sangue está abaixo do ideal para a idade. *Continua nos próximo post*

E aí tentamos de tudo: volta de barriga pra baixo, não sai dessa posição por nada! Vamos fazer a VNI ou o Elmo - e às vezes o paciente pede pelo amor de Deus que não faça. São terapias com pressão positiva, que dão sensação de claustrofobia em alguns pacientes, que forçam um pouco o pulmão a abrir - e são muito desconfortáveis para a grande maioria. E temos que dizer: senhora, é para evitar o tubo. E, por fim de 3h, 5h, 7h dessas terapias, temos que coletar outro exame com outra dor terrível e ver que não houve resposta. Que precisamos ir para a intubação.Prepara tudo, não avisa o paciente ainda - ele não vai aguentar de ansiedade. Chama a central de materiais, pede ventilador. Não tem? E agora? Pede material para tubo, separa as drogas, separa o carrinho, pega um monitor - também não tem? Vamos tirar de outro que precise menos... tudo pronto? Vou avisar... "dona Maria, boa noite. Infelizmente os exames não mostraram melhora... tá piorando. Seu pulmão não está conseguindo oxigenar apesar de estamos fornecendo o máximo de oxigênio que existe no hospital. Vamos precisar fazer um procedimento chamado intubação, a senhora vai dormir o tempo todo e não vai sentir nada. Um tubo vai na sua garganta até seu pulmão, para ventilar melhor, só pelo tempo do seu corpo combater a doença. Certo?".E aí ela olha pra você e diz que vai morrer. E chora, e pede para não morrer, por favor. E você faz rosto firme e diz que ela não vai. Não vai morrer.Mesmo sabendo que estamos evitando intubar ao máximo. Mesmo sabendo que intubar não significa que vou conseguir oxigenar. Que o pulmão está tão rígido e destruído da doença que às vezes não conseguimos MESMO. Que parece que estamos sem saída. Que vai faltar droga para manter ele dormindo enquanto precisaria estar. Que muitos vão pra diálise. Que 80% dos intubados na segunda onda da doença estão morrendo. E que não vai ter leito de UTI para ele, e que ou ele morre na sua mão daqui há uns dias ou sai do tubo também pela sua mão. E é rezar para que seja a segunda opção.

Trabalhar na tão falada linha de frente é isso. É chamar a família algumas (muitas) vezes para avisar que não tá mais dando certo nada que está sendo tentado... Que o paciente é grave e está em esgotamento terapêutico... E que, juro para a senhora, estou fazendo tudo pela sua mãe que eu faria pela minha.É ver paciente chorar todos os dias, é ter vontade de chorar junto, é perder a esperança algumas vezes todos os dias e ganhar de novo com alguns pequenos gestos. É aprender, mais do que nunca, a trabalhar em equipe. É fazer o possível e o que seria impossível para você há uns tempos. É redescobrir tudo todo dia. É se apegar muito.É ficar sem ir ao banheiro ou beber água muitas vezes. É almoçar - peraí, almoçar? Que nada. Lanche da tarde. É, em um plantão noturno, entrar às 19h e sair às 7h sem ter pisado no repouso nenhuma vez, porque teve 3 intubações e um óbito. É, por fim, preencher a declaração de óbito triste, porque a causa base é COVID e a família não vai poder se despedir. Como aconteceu com meu avô.Não somos heróis, estamos apenas fazendo nosso trabalho da melhor forma que podemos. Ajudem, conscientizem-se e cuidem-se. Vacinem-se quando puderem, usem máscara sempre e lavem as mãos ou usem álcool com a maior frequência possível. São as únicas evidências que de fato existem para prevenir tudo isso. Por amor ao próximo, sejam firmes. Tudo isso um dia vai acabar.“O amor é o centro invisível de todos os atos e de todos os fatos”. Arthur Schopenhauer.

15 Abr 2021

Relato de uma médica na linha de frente contra o COVID19.

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