06/10/2022 às 22:23 Devaneios Arte, cultura e sociedade

No meu tempo é que era bom.

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Figueiredo era um senhor de 89 anos de idade. Militar aposentado de alta patente, morava em um asilo de luxo desde os 75 anos, apesar de não ter qualquer traço de senilidade. O motivo da mudança para o asilo era a família. Os filhos queriam vender o luxuoso apartamento dos pais, uma cobertura com mais de 300 metros quadrados na orla da cidade, de frente para o mar. Figueiredo não achou justo, chamou os filhos de comunistas que queriam lhe roubar, disse que destruiriam o patrimônio da família e que eram a vergonha de seu avô - o pai de Figueiredo foi um dos principais nomes por trás da instituição do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna, instrumentos de opressão e violência da ditadura militar), e ferrenho defensor da “luta contra o comunismo”. Os filhos, que não tiveram dificuldade em tornar o pai um incapaz perante a justiça, ignoraram e fizeram o que queriam. Desde então, Figueiredo permanecia no asilo, sem visitas, tendo como único hobby discursar aos colegas, diariamente, contra o comunismo e em defesa da ditadura militar.


Em seus discursos, ouvidos apenas por três fiéis seguidores com histórias de vida bastante parecidas com a sua, bradava que o que estava afundando o Brasil era o comunismo. Contava, pela centésima vez, que seu pai foi um dos grandes "heróis" do regime militar, responsável por eliminar incontáveis inimigos do governo. Os três companheiros sempre relembravam os “bons tempos”. Contavam que suas famílias enriqueceram graças ao crescimento econômico dos governos militares, e que isso só prova que quem não consegue, é porque não trabalha suficiente. Figueiredo relembrava a juventude, dizendo que tudo ficou mais seguro quando os “bandidos comunistas” começaram a ser exterminados. Cavalcante completava: - pena que não conseguiram eliminar todos, agora estão aí se multiplicando, bando de inúteis. Os demais concordavam.


Para Figueiredo, no entanto, sua principal indignação com os tempos modernos é ter lutado tanto contra “esses vermelhos” e acabar a vida cercado daqueles que ele via como comunistas. Os filhos, mesmo fazendo arminha com a mão, ele considerava traidores. A clínica onde residia, um asilo dos mais luxuosos da região, seguia um modelo não convencional. O tratamento era sem violência, mas com frieza. Os pacientes não tinham acesso a nada que não fosse considerado necessário para sua sobrevivência. Não havia televisão ou música, nem qualquer prática de atividade física, apesar dos espaços verdes belíssimos e dos cômodos estruturados com bastante requinte. O objetivo do asilo era acolher os indesejados pelas famílias e garantir que morreriam sem causar problemas a ninguém. Suas mortes não eram provocadas, obviamente não queriam futuras investigações, mas suas vidas eram limitadas a existirem naqueles espaços, sem diversão ou estímulos. Afinal, se a família não dá a mínima, porque se preocupar em lhes proporcionar alegrias no fim da vida? Assim, a clínica era, para Figueiredo, uma prisão comunista para onde os filhos o mandaram. Não podia comer o que queria, já que os cardápios eram restritos, ou assistir aos jogos do time que acompanhava desde a infância. Não recebia jornais ou revistas, e apostava que isso era para que os esquerdistas encobrissem como estavam agindo no país.


Quando a enfermeira vinha lhe levar para colocá-lo em seu quarto - um espaço que mais parecia quarto de hotel 5 estrelas, onde era trancado na hora de dormir -, Figueiredo dizia, fervendo de raiva, que o destino da moça seria o pau de arara, que sabia que seu capitão estava retomando a “caça aos comunas” e que logo descobririam aquele “antro de covardes vermelhos”, resgatando das "garras comunistas" aqueles que carregaram o Brasil nas costas. Lídia lamentava ter de ouvir tais impropérios todos os dias, ainda mais sendo filha de um desaparecido da ditadura militar. Sua mãe sobreviveu por pouco às muitas torturas e presenciou as atrocidades que fizeram com o marido. Jamais escondeu nada da filha. Lídia sabia bem o que os pais enfrentaram nos porões da ditadura. A enfermeira queria rebater os devaneios de Figueiredo, mas sempre procurava se acalmar. Calava-se e ia embora, educadamente desejando “boa noite”. Havia encontrado seus próprios meios para defender a história de sua família e de tantas outras. Após se tornar enfermeira, Lídia cursou bacharelado em História e está concluindo o mestrado, em que se dedicou a pesquisar sobre os fatores que ainda mantém viva, em determinados círculos, a ideia de que o período da ditadura militar foi positivo para o país. Lídia incumbiu-se de seguir com seus estudos e difundir a realidade sobre o que o golpe de 1964 trouxe para a nação.


Além disso, Lídia acreditava em carma. Acreditava que ali naquela clínica, sozinho, sem nada do que antes gostava de fazer, sem ver amigos e família, sem visitas, sem poder ir aonde quer e com seu tempo regrado de acordo com as vontades dos outros, Figueiredo já estava recebendo seu castigo. Tinha sido privado de tudo o que havia escolhido para si durante toda a sua vida. Figueiredo, já mais distante, gritava “no meu tempo é que era bom”. Lídia, sorrindo, pensava que ele está recebendo tudo aquilo que tanto deseja.


O velho defensor da ditadura ganhou dos filhos o seu próprio AI-5.


06 Out 2022

No meu tempo é que era bom.

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